OS DEMÔNIOS DO DEMÔNIO Esta é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito, muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos O Demônio é mulçumano Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. "O vi partido", celebrou o poeta em A Divina Comédia , "desde a barba até a parte inferior do ventre...". Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes. Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças. Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões. Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço. A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação O Demônio é judeu Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes. A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram. A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa. "Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável" O Demônio é mulher O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos. Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países. Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: "Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável". E demonstravam que "esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal" encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: "A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços". Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua. O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: - As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens. Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva. O mesmo pânico faz com que os mulçumanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara. E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: "Graças, Senhor, por não me ter feito mulher". Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo O Demônio é homossexual Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo. Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo. Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade. Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora. Na Alemanha nazista, estes "degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza" eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados. No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram "retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto". Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização. Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado O Demônio é índio Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus. A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra. Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler O Demônio é negro Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência. Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. "Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios". Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu "um negrinho abominável". Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso. Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias.Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler. O Demônio é estrangeiro O imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças O "culpômetro" indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o "perigosímetro" acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade. O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças. Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie. Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos O Demônio é pobre Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer. Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes. Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino. Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e seqüestram países. Eduardo Galeano Lê Monde Diplomatique |
O DESAFIO DA RAZÃO: MANIFESTO PARA A RENOVAÇÃO DA HISTÓRIA É tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade. A análise é de Eric Hobsbawm. "Até agora, os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo; trata-se de mudá-lo." Os dois enunciados da célebre "Teses sobre Feuerbach", de Karl Marx, inspiraram os historiadores marxistas. A maioria dos intelectuais que aderiram ao marxismo a partir da década de 1880 —entre eles os historiadores marxistas— fizeram isso porque queriam mudar o mundo, junto com os movimentos operários e socialistas; movimentos que se transformariam, em grande medida devido à influência do marxismo, em forças políticas de massas. Essa cooperação orientou de maneira natural os historiadores que queriam transformar o mundo na direção de certos campos de estudo —fundamentalmente, a história do povo ou da população operária— os quais, se bem atraíam naturalmente as pessoas de esquerda, não tinham em sua origem nenhuma relação particular com uma interpretação marxista. Por outro lado, quando esses intelectuais deixaram de ser revolucionários sociais, a partir da década de 1890, com freqüência também deixaram de ser marxistas. A revolução soviética de outubro de 1917 reavivou esse compromisso. Lembremos que os principais partidos social-democratas da Europa continental abandonaram completamente o marxismo apenas na década de 1950, e às vezes ainda depois disso. Essa revolução gerou, também, o que poderíamos chamar de uma historiografia marxista obrigatória na URSS e nos Estados, que depois foi adotada por regimes comunistas. A motivação militante foi reforçada durante o período do antifascismo. A partir da década de 1950 essa tendência começou a decair nos países desenvolvidos —mas não no Terceiro Mundo— apesar de que o considerável desenvolvimento do ensino universitário e a agitação estudantil geraram, dentro da universidade, na década de 1960, um novo e importante contingente de pessoas decididas a mudar o mundo. Contudo, apesar de desejar uma mudança radical, muitas delas já não eram abertamente marxistas, e algumas já não eram marxistas em absoluto. Esse ressurgimento culminou na década de 1970, pouco antes do início de uma reação massiva contra o marxismo, mais uma vez por razões essencialmente políticas. Essa reação teve como principal efeito —exceto para os liberais, que ainda acreditam nisso— o aniquilamento da idéia de que é possível predizer, apoiados na análise histórica, o sucesso de uma forma particular de organizar a sociedade humana. A história havia se dissociado da teleologia. Considerando as incertas perspectivas que se apresentam aos movimentos socialdemocratas e social-revolucionários, não é provável que assistamos a uma nova onda politicamente motivada de adesão ao marxismo. Mas devemos evitar cair em um centrismo ocidental excessivo. A julgar pela demanda de que são objeto meus próprios livros de história, comprovo que ela se desenvolve na Coréia do Sul e em Taiwan, desde a década de 1980, na Turquia, desde a década de 1990, e que há sinais de que atualmente avança no mundo árabe. A virada social O que aconteceu com a dimensão "interpretação do mundo" do marxismo? A história é um pouco diferente, ainda que paralela. Concerne ao crescimento do que se pode chamar de reação anti-Ranke, da qual o marxismo constituiu um elemento importante, apesar de que isso nem sempre foi totalmente reconhecido. Tratou-se de um movimento duplo. Por um lado, esse movimento questionava a idéia positivista segundo a qual a estrutura objetiva da realidade era, por assim dizer, evidente: bastava com aplicar a metodologia da ciência, explicar por que as coisas tinham ocorrido de tal ou qual maneira e descobrir wie es eigentlich gewessen (como ocorreu realmente). Para todos os historiadores, a historiografia se manteve e se mantém enraizada em uma realidade objetiva, ou seja, a realidade do que ocorreu no passado; contudo, não está baseada em fatos e, sim, em problemas, e exige investigação para compreender como e por que esses problemas —paradigmas e conceitos— são formulados da maneira em que são o em tradições históricas e em meios socioculturais diferentes. Por outro lado, esse movimento tentava aproximar as ciências sociais da história e, em conseqüência, englobá-las em uma disciplina geral, capaz de explicar as transformações da sociedade humana. Segundo a expressão de Lawrence Stone, o objeto da história deveria ser "propor as grandes perguntas do por quê". Essa "virada social" não veio da historiografia, senão das ciências sociais —algumas delas incipientes como tais— que naquele momento firmavam-se como disciplinas evolucionistas, ou seja, históricas. Na medida em que é possível considerar Marx como o pai da sociologia do conhecimento, o marxismo —apesar de ter sido denunciado erradamente em nome de um suposto objetivismo cego— contribuiu para dar o primeiro aspecto desse movimento. Além disso, o impacto mais conhecido das idéias marxistas —a importância outorgada aos fatores econômicos e sociais— não era especificamente marxista, ainda que a análise marxista pesou nessa orientação, que estava inscrita em um movimento historiográfico geral, visível a partir da década de 1890, e que culminou nas décadas de 1950 e 1960, para benefício da geração de historiadores à qual pertenço, que teve a possibilidade de transformar a disciplina. Essa corrente socio-econômica superava o marxismo. A criação de revistas e instituições de história econômico-social às vezes foi obra —como na Alemanha— de socialdemocratas marxistas, como ocorreu com a revista Vierteljahrschrift em 1893. Não aconteceu da mesma maneira na Grã Bretanha, nem na França, nem nos Estados Unidos. E inclusive na Alemanha, a escola de economia, marcadamente histórica, não tinha nada de marxismo. Somente no Terceiro Mundo do século XIX (Rússia e os Balcãs) e no do século XX, a história econômica adotou uma orientação principalmente social-revolucionária, como toda "ciência social". Em conseqüência disto, foi muito atraída por Marx. Em todos os casos, o interesse histórico dos historiadores marxistas não se centrou tanto na "base" (a infra-estrutura econômica) como nas relações entre a base e a superestrutura. Os historiadores explicitamente marxistas sempre foram relativamente escassos. Marx influenciou a história principalmente através dos historiadores e dos pesquisadores em ciências sociais que retomaram as questões que ele colocava, tenham eles trazido, ou não, outras respostas. Por sua vez, a historiografia marxista avançou muito em relação ao que era na época de Karl Kautsky e de Georgi Plekhanov, em boa parte graças à sua fertilização por outras disciplinas (fundamentalmente a antropologia social) e por pensadores influenciados por Marx e que completavam seu pensamento, como Max Weber. Se destaco o caráter geral dessa corrente historiográfica, não é por vontade de subestimar as divergências que contém, ou que existiam no seio de seus componentes. Os modernizadores da história colocaram-se as mesmas questões e consideravam-se comprometidos nos mesmos combates intelectuais, seja que tenham buscado inspiração na geografia humana, na sociologia durkheimiana e nas estatísticas, como na França (simultaneamente, a escola dos Anais e Labrousse), ou na sociologia weberiana, como a Historische Sozialwissenschaft na Alemanha Federal, ou mesmo no marxismo dos historiadores do Partido Comunista, que foram os vectores da modernização da história na Grã Bretanha, ou que, pelo menos, fundaram sua principal revista. Uns e outros consideravam-se aliados contra o conservadorismo na história, mesmo quando suas posições políticas ou ideológicas eram antagônicas, como Michael Postan e seus alunos marxistas britânicos. Essa coalizão progressista encontrou expressão exemplar na revista Past & Pressent, fundada em 1952, muito respeitada no ambiente dos historiadores. O sucesso dessa publicação foi devido que os jovens marxistas que a fundaram opuseram-se deliberadamente à exclusividade ideológica, e a que os jovens modernizadores provenientes de outros horizontes ideológicos estavam dispostos a juntar-se a eles, uma vez que sabiam que as diferenças ideológicas e políticas não eram um obstáculo para o trabalho conjunto. Essa frente progressista avançou de maneira espetacular entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, naquilo que Lawrence Stone denomina "o amplo conjunto de transformações na natureza do discurso histórico". Isso até a crise de 1985, quando ocorreu a transição dos estudos quantitativos para os estudos qualitativos, da macro para a micro-história, das análises estruturais aos relatos, do social para os temas culturais. Desde então, a coalizão modernizadora está na defensiva, igual que seus componentes não marxistas, como a história econômica e social. Na década de 1970, a corrente dominante em história tinha sofrido uma transformação tão grande, especialmente sob a influência das "grandes questões" colocadas ao modo de Marx, que escrevi estas linhas: "Com freqüência é impossível dizer se um livro foi escrito por um marxista ou por um não-marxista, a menos que o autor anuncie sua posição ideológica. Espero com impaciência o dia em que ninguém se pergunte se os autores são marxistas ou não". Mas, como também apontava, estávamos longe de semelhante utopia. Desde então, pelo contrário, foi necessário sublinhar com maior energia qual pode ser a contribuição do marxismo para a historiografia. Coisa que não acontecia há muito tempo. Também porque é preciso defender a história contra aqueles que negam sua capacidade de ajudar-nos a compreender o mundo, e porque novos desenvolvimentos científicos transformaram completamente o calendário historiográfico. No plano metodológico, o fenômeno negativo mais importante foi a edificação de uma série de barreiras entre o que ocorreu, ou o que ocorre, em história e nossa capacidade para observar esses fatos e entendê-los. Esses bloqueios obedecem à recusa em admitir que existe uma realidade objetiva, e não construída pelo observador com fins diversos e mutáveis, ou ao fato de afirmar que somos incapazes de superar os limites da linguagem, ou seja, dos conceitos, que são o único meio que temos para poder falar do mundo, incluindo o passado. Essa visão elimina a questão de saber se existem esquemas e regularidades no passado, a partir dos quais o historiador pode formular propostas significativas. Contudo, também há razões menos teóricas que levam a essa recusa: argumenta-se que o curso do passado é contingente demais, ou seja, que é preciso excluir as generalizações, uma vez que praticamente tudo poderia ocorrer ou teria podido ocorrer. De modo implícito, esses argumentos miram todas as ciências. Vamos passar por alto tentativas mais fúteis de voltar a velhos conceitos: atribuir o curso da história a altos responsáveis políticos ou militares, ou à onipotência das idéias ou dos "valores"; reduzir a erudição histórica à busca —importante mas em si insuficiente— de uma empatia com o passado. O grande perigo político imediato que ameaça a historiografia atual é o "antiuniversalismo": "minha verdade é tão válida quanto a sua, independente dos fatos". Esse antiuniversalismo seduz naturalmente a história dos grupos identitários em suas diferentes formas, para a qual o objeto essencial da história não é o que ocorreu, mas como isso que ocorreu afeta os membros de um grupo em particular. De modo geral, o que conta para esse tipo de história não é a explicação racional, mas a "significação"; não o que ocorreu, mas como sentem o que ocorreu os membros de uma coletividade que se define por oposição às demais em termos de religião, de etnia, de nação, de sexo, de modo de vida, ou de outras características. O relativismo exerce atração sobre a história dos grupos identitários. Por diferentes razões, a invenção massiva de contra-verdades históricas e de mitos, outras tantas tergiversações ditadas pela emoção, alcançou uma verdadeira época de ouro nos últimos trinta anos. Alguns desses mitos representam um perigo público —em países como a Índia durante o governo hinduísta, nos Estados Unidos e na Itália de Silvio Berlusconi, para não mencionar muitos outros dos novos nacionalismos, acompanhados ou não de manifestações de integrismo religioso. De qualquer modo, se por um lado esse fenômeno deu lugar a muito palavrório e bobagens nas margens mais longínquas da história de grupos específicos —nacionalistas, feministas, gays, negros e outros— por outro, gerou desenvolvimentos históricos inéditos e extremamente interessantes no campo dos estudos culturais, como o "boom da memória nos estudos históricos contemporâneos", como Jay Winter o denomina. Os Lugares de Memória, coordenados por Pierre Nora, é um bom exemplo. Reconstruir a frente da razão Diante de todos esses desvios, é tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade. Dado que entre esses relativistas e pós-modernos há quem se considere de esquerda, poderiam surgir inesperadas divergências políticas capazes de dividir os historiadores. Portanto, o ponto de vista marxista é um elemento necessário para a reconstrução da frente da razão, como foi nas décadas de 1950 e 1960. De fato, a contribuição marxista provavelmente seja ainda mais pertinente agora, dado que os outros componentes da coalizão dessa época renunciaram, como a escola dos Anais de Fernand Braudel e a "antropologia social estrutural-funcional", cuja influência entre os historiadores foi tão importante. Esta disciplina foi particularmente perturbada pela avalanche em direção à subjetividade pós-moderna. Contudo, enquanto os pós-modernos negavam a possibilidade de uma compreensão histórica, os avanços nas ciências naturais devolviam à história evolucionista da humanidade toda sua atualidade, sem que os historiadores percebessem cabalmente. E isto de duas maneiras. Em primeiro lugar, a análise do DNA estabeleceu uma cronologia mais sólida do desenvolvimento desde o aparecimento do homo sapiens como espécie. Em particular, a cronologia da expansão dessa espécie originaria da África para o resto do mundo, e dos desenvolvimentos posteriores, antes do aparecimento de fontes escritas. Ao mesmo tempo, isso evidenciou a surpreendente brevidade da história humana —segundo critérios geológicos e paleontológicos— e eliminou a solução reducionista da sociobiologia darwiniana. As transformações da vida humana, coletiva e individual, durante os últimos dez mil anos, e particularmente durante as dez últimas gerações, são consideráveis demais para serem explicadas por um mecanismo de evolução inteiramente darwiniano, pelos genes. Essas transformações correspondem a uma aceleração na transmissão das características adquiridas por mecanismos culturais e não genéticos; poderia dizer-se que se trata da revanche de Lamarck contra Darwin, através da história humana. E não serve de muito disfarçar o fenômeno com metáforas biológicas, falando de "memes" ao invés de "genes". O patrimônio cultural e o biológico não funcionam da mesma maneira. Em síntese, a revolução do DNA requer um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana. Além disso, vale a pena mencioná-lo, proporciona um marco racional para a elaboração de uma história do mundo. Uma história que considere o planeta em toda a sua complexidade como unidade dos estudos históricos, e não como um entorno particular ou uma região determinada. Em outras palavras: a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios. Em segundo lugar, a nova biologia evolucionista elimina a estrita distinção entre história e ciências naturais, já eliminada em grande medida pela "historicização" sistemática destas ciências nas últimas décadas. Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos pioneiros multidisciplinares da revolução DNA, fala do "prazer intelectual de encontrar tantas semelhanças entre campos de estudo tão diferentes, alguns dos quais pertencem tradicionalmente aos pólos opostos da cultura: a ciência e as humanidades". Em síntese, essa nova biologia nos liberta do falso debate sobre o problema de saber se a história é ou não uma ciência. Em terceiro lugar, ela nos leva inevitavelmente para a visão de base da evolução humana adotada pelos arqueólogos e os pré-historiadores, que consiste em estudar os modos de interação entre nossa espécie e seu meio ambiente, alem do crescente controle que ela exerce sobre esse meio. O que eqüivale essencialmente a fazer as perguntas que já fazia Karl Marx. Os "modos de produção" (seja qual for o nome que se quiser dar-lhes) baseados em grandes inovações da tecnologia produtiva, das comunicações e da organização social —e também do poder militar— são o núcleo da evolução humana. Essas inovações, e Marx era consciente disso, não ocorreram e não ocorrem por elas mesmas. As forças materiais e culturais e as relações de produção são inseparáveis; são as atividades de homens e mulheres que constroem sua própria história, mas não no "vácuo", não fora da vida material, nem fora do seu passado histórico. Do neolítico à era nuclear Consequentemente, as novas perspectivas para a história também devem nos levar a essa meta essencial de quem estuda o passado, mesmo que nunca seja cabalmente realizável: "a história total". Não "a história de tudo", mas a história como uma tela indivisível onde todas as atividades humanas estão interconectadas. Os marxistas não são os únicos que se propuseram esse objetivo —Fernand Braudel também fez isso— mas foram eles que o perseguiram com mais tenacidade, como dizia um deles, Pierre Vilar. Entre as questões importantes que suscitam estas novas perspectivas, a que nos leva à evolução histórica do homem é essencial. Trata-se do conflito entre as forças responsáveis pela transformação do homo sapiens, desde a humanidade do neolítico até a humanidade nuclear, por um lado, e por outro, as forças que mantêm imutáveis a reprodução e a estabilidade das coletividades humanas ou dos meios sociais, e que durante a maior parte da história as neutralizaram eficazmente. Essa questão teórica é central. O equilíbrio de forças inclina-se de maneira decisiva em uma direção. E esse desequilíbrio, que talvez supere a capacidade de compreensão dos seres humanos, supera com certeza a capacidade de controle das instituições sociais e políticas humanas. Os historiadores marxistas, que não entenderam as conseqüências involuntárias e não desejadas dos projetos coletivos humanos do século XX, talvez possam, desta vez, enriquecidos por sua experiência prática, ajudar a compreender como chegamos à situação atual. Eric Hobsbawm Carta Maior Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores |
ADOLF HITLER ESTAVA MESMO PRÓXIMO DE DESENVOLVER UMA BOMBA ATÔMICA? Historiador alemão informa em "A Bomba de Hitler" que os nazistas realizaram três testes nucleares entre 1944 e 1945. Por outro lado, o pesquisador não tem prova alguma para embasar suas teorias Os Estados Unidos precisaram de 125 mil pessoas, entre as quais seis futuros contemplados com um Prêmio Nobel, para desenvolver as bombas atômicas que explodiram sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. A central de enriquecimento do urânio sozinha, incluída a sua área de segurança, tinha o tamanho da cidade alemã de Frankfurt. Chamada de Projeto Manhattan, a pesquisa acabou somando um custo total equivalente, em valores atualizados, a cerca de US$ 30 bilhões (R$ 82,86 bilhões). Em seu novo livro, "A Bomba de Hitler", o historiador berlinense Rainer Karlsch garante que a Alemanha nazista quase obteve resultados similares, graças à colaboração de alguns poucos físicos pesquisadores apenas, e contando com uma fração deste orçamento. O autor escreve que esses cientistas alemães, na companhia de membros do exército, conduziram três experiências com armas nucleares pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, uma na ilha alemã de Ruegen, no outono de 1944, e duas na Alemanha Oriental, no Estado de Turíngia, em março de 1945. Os testes, acrescenta Karlsch, mataram mais de setecentos. Se esta teoria estiver certa, seria preciso reescrever a história. Desde o dia em que os Aliados ocuparam os laboratórios do Terceiro Reich e interrogaram os cientistas mais importantes em atividade na Alemanha, que trabalhavam em projetos sob a supervisão do engenheiro nuclear em chefe Werner Heisenberg e do seu colega Carl Friedrich von Weizsäcker, é tido como certo que os cientistas de Hitler ainda estavam muito longe de conseguir construir uma arma nuclear completa. A editora de Rainer Karlsch, a alemã Verlags-Anstalt, já está divulgando anúncios inflamados, garantindo que o livro traz "descobertas sensacionais das mais recentes pesquisas históricas [sobre a Alemanha nazista]". O Terceiro Reich, afirma a editora, estava "prestes a chegar primeiro na corrida para adquirir a primeira arma nuclear operacional". Até mesmo antes de o livro ser publicado, esta editora, que geralmente costuma mostrar-se mais reservada, enviou kits de imprensa para os meios de comunicação, nos quais ela sustenta que o autor havia desvendado "um dos maiores mistérios do Terceiro Reich". O livro foi apresentado na última segunda-feira (14/03) por ocasião de uma coletiva de imprensa minuciosamente organizada. Karlsch, um acadêmico não-afiliado, planeja realizar uma extensa turnê para divulgar o seu livro. O único problema com todo esse estardalhaço é que o historiador não tem prova real alguma para embasar a sua teoria espetacular. Os depoimentos que ele colheu ora carecem de credibilidade, ora são desprovidos de qualquer conhecimento imediato dos eventos descritos no livro. Os documentos que, conforme Karlsch insiste em afirmar, constituem peças-chave para sustentar a sua tese, podem, na verdade, ser interpretados de diversas formas, algumas das quais contradizem a sua teoria. E finalmente, as análises de amostragens do solo que foram colhidas até este momento nos locais onde essas bombas teriam sido detonadas não fornecem "nenhuma indicação de que houve a explosão de uma bomba atômica", segundo informações que foram fornecidas por Gerald Kirchner, da agência federal alemã de proteção contra radiações. Rainer Karlsch passou vários anos em arquivos pesquisando o seu assunto, no decorrer dos quais ele descobriu muitos documentos desconhecidos sobre a história da ciência durante o Terceiro Reich. Entre eles está um manuscrito de um dos discursos de Heisenberg (Werner Heisenberg, físico, 1901-1973) que os historiadores até então davam como perdido. Por si só, este manuscrito teria constituído uma descoberta significativa, mas isso não era o bastante para satisfazer Karlsch nem para embasar plenamente a sua teoria fora do comum. Em conseqüência disso, para dar asas à sua teoria, ele foi obrigado a arriscar alguns saltos especulativos. O efeito bazuca Por um lado, Karlsch se concentra na pessoa de Erich Schumann, um cientista que serviu o exército alemão como diretor de pesquisas da divisão de armas até 1944. Em meio ao conjunto de bens que pertenceram a Schumann, Karlsch descobriu anotações e relatórios redigidos no período do pós-guerra. Schumann, que era um antigo professor de física, escreveu que em 1944 ele descobrira um método para gerar as altas temperaturas (vários milhões de graus Celsius) e a pressão extrema necessárias para desencadear a fusão nuclear, utilizando para isso explosivos convencionais. A bomba de hidrogênio baseia-se neste princípio. Durante a Segunda Guerra Mundial, especialistas em explosivos realizaram experiências com cargas ocas --formadas essencialmente por dispositivos explosivos cavados na sua parte interna-- que possuem uma força de impacto e de penetração extremamente elevada. O sucesso da bazuca é baseado neste efeito e Schumann acreditava que ele poderia aplicá-lo a uma arma nuclear. Ele tomava por certo que uma quantidade suficiente de energia para a fusão nuclear seria liberada se duas cargas ocas fossem percutidas uma contra a outra. Esta é uma teoria que merece ser considerada seriamente. No entanto, Schumann nunca reivindicou ter testado a sua teoria na prática. Mesmo assim, Karlsch acredita que ele realizou esta experiência. Ele garante que Schumann expôs as suas idéias numa conferência que ocorreu no outono de 1944. O autor então especula que, sob as ordens de oficiais da SS (força paramilitar nazista), uma equipe de físicos pesquisadores dirigida por Kurt Diebner, um rival de Heisenberg, pôs a descoberta para funcionar. Karlsch baseia a sua teoria em parte em declarações feitas por Gerhard Rundnagel, um encanador que trabalhava a serviço da força de segurança da Alemanha Oriental, a Stasi. Nos anos 60, a Stasi tomou conhecimento de rumores que estavam circulando no antigo Estado alemão de Turíngia segundo os quais teria ocorrido uma detonação nuclear na região em 1945. Rundnagel contou aos serviços de inteligência que ele tivera contatos com a equipe de pesquisas dirigida por Kurt Diebner. Ele acrescentou que um dos engenheiros do grupo lhe dissera que havia "duas bombas atômicas dentro de um silo blindado". Mais tarde, Rundnagel chegou a afirmar que as duas bombas haviam sido lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. A despeito desta inconsistência, Karlsch acredita que o homem deveria ser levado a sério. Uma argumentação repleta de buracos O maior buraco na argumentação de Karlsch provém da sua incapacidade de comprovar de que maneira o grupo de Diebner conseguiu pôr em prática as idéias de Schumann. Segundo Karlsch, Diebner e seus colegas utilizaram um dispositivo especial que combinou a fissão e a fusão nucleares juntas para iniciar uma reação em cadeia. Contando com a ajuda de engenheiros, Karlsch produziu um desenho para representar tal arma, que ele apresenta no seu livro. Joachim Schulze, um especialista em armas nucleares do Instituto Fraunhofer, na Alemanha, examinou o modelo de Karlsch e disse que ele "não poderia funcionar, de maneira alguma". Uma outra teoria que Karlsch apresenta no seu livro --a de que a marinha alemã havia realizado um teste com uma arma nuclear na ilha de Ruegen, no Mar Báltico-- não é menos que fantástica. A sua testemunha-chave é Luigi Romersa, um antigo repórter de guerra do jornal milanês "Corriere della Sera". Por anos a fio, Romersa, um romano que hoje tem 87 anos, andou contando a história de como ele visitou Hitler em outubro de 1944 e foi então enviado de avião para uma ilha no Mar Báltico. Romersa conta que ele foi levado para um abrigo onde foi testemunha de uma explosão que produziu uma luz brilhante, e que os homens que trajavam roupas de proteção o levaram então do local, dizendo-lhe que ele acabara de testemunhar a explosão de uma "bomba de fissão". Infelizmente, Romersa não se lembra do nome da ilha que ele diz ter visitado, nem de quem era responsável pela realização deste evento estranho. Karlsch acredita que era Ruegen. Ele simplesmente descarta o fato de que uma análise do solo não mostrou nenhum indício de que teria havido uma explosão nuclear, concentrando a pesquisa nos níveis de erosão. Um testemunho mais confiável é aquele de uma moradora da Turíngia, que faleceu recentemente, Clare Werner. Em 4 de março de 1945, Clare, que estava caminhando numa encosta nas proximidades, testemunhou uma explosão que ocorreu numa área de treinamento militar, perto da cidade de Ohrdruf. "Aconteceu por volta das 21h30; de repente eu vi alguma coisa ... era algo tão brilhante quanto centenas de relâmpagos, era vermelho na parte interna e amarelo na parte externa, tão brilhante que era possível ler o jornal. Tudo aconteceu tão rápido, e então nós não vimos mais nada. Apenas pudemos constatar que havia um vento muito forte..." A mulher disse que passou a sofrer então de "sangramentos no nariz, dores de cabeça e pressão nos ouvidos". No dia seguinte, Heinz Wachsmut, um operário que trabalhava para uma companhia local de escavação, recebeu a ordem de ajudar os SS a construir plataformas de madeira sobre as quais os cadáveres dos prisioneiros eram cremados. Segundo Wachsmut, os corpos estavam cobertos por horríveis ferimentos provocados por queimaduras. Assim como Clare Werner, Wachsmut relata que muitos habitantes da região se queixaram de dores de cabeça, e que muitos deles cuspiam sangue. Segundo o relato de Wachsmut, vários oficiais SS de alta patente contaram às pessoas que uma experiência havia sido realizada com alguma coisa nova, uma coisa a respeito da qual o mundo inteiro logo estaria falando. É claro, não houve qualquer referência a armas nucleares. Será que Stalin ouviu relatórios sobre a arma? E o que dizer das 700 vítimas, supostamente prisioneiras do campo de concentração, que, segundo Karlsch, teriam morrido durante os testes? Essa estatística impressionante nada mais é que uma estimativa baseada na quantidade de locais onde se procedia à cremação dos corpos, até onde Wachsmut consegue se lembrar. Contudo, na data da suposta detonação da bomba, no campo de concentração de Ohrdruf, que era parte do complexo mais amplo de Buchenwald, foram registrados não mais que 35 mortos. Um outro elemento de prova que Karlsch menciona é um relatório dos serviços de espionagem do exército soviético que foi redigido em março de 1945. Segundo este documento, que cita uma "fonte confiável", os alemães "provocaram duas importantes explosões em Turíngia". E o espião soviético acrescentou: presume-se que as bombas continham urânio 235, um material utilizado na fabricação de armas nucleares, e que elas produziram um "efeito fortemente radioativo". Os prisioneiros de guerra que se encontravam à proximidade do local da explosão foram mortos, "e, em muitos casos, os seus corpos foram completamente desintegrados". Os espiões do Exército Vermelho manifestaram a preocupação de que o exército alemão pudesse "tornar a nossa ofensiva mais lenta" com a descoberta desta nova arma. O fato de o ditador Josef Stalin ter recebido apenas uma das quatro cópias deste relatório mostra que o Kremlin não levou essas notícias tão a sério assim. Infelizmente, o documento que Karlsch apresenta é de uma qualidade tão questionável que não permite determinar claramente se o relatório que descreve as explosões foi redigido antes ou depois da detonação que Clare Werner diz ter testemunhado. O que é mais importante, contudo, é que aquilo que Clare Werner garante ter visto não poderia ser uma detonação de uma bomba do tipo daquela que o informante alemão descreveu para o serviço de espionagem do Exército Vermelho. Aquele tipo de artefato teria exigido vários quilogramas de urânio fortemente enriquecido, que os alemães não possuíam, conforme acreditam todos os especialistas, inclusive Karlsch. Existe um único especialista que, conforme esperam o autor e o seu editor fanfarrão, pode dar sustentação às teorias de Karlsch. Uwe Keyser, um engenheiro de física nuclear que trabalha no Instituto Federal de Física e de Tecnologia de Braunschweig, na Alemanha, está analisando atualmente amostragens do solo da área do campo de concentração de Ohrdruf. Keyser acredita que os níveis de radioatividade das substâncias que ele conseguiu detectar até agora são suficientemente atípicos para que a explosão de um dispositivo nuclear simples não seja descartada. É claro, a radioatividade que Keyser diz ter detectado poderia também ter sido causada por processos que ocorrem normalmente na natureza, ou por algum material que foi abandonado pelas forças soviéticas que estiveram estacionadas em Ohrdruf até 1994, ou ainda por partículas radioativas que foram geradas pelo desastre de Chernobyl, em 1986, ou mesmo por testes com armas nucleares que teriam sido realizados por uma das superpotências. Keyser afirma que ele precisa de "cerca de um ano" para desenvolver uma análise mais precisa. Ele também precisa de alguém que "assine embaixo" suas teorias, e que continue a pagar as suas contas. Klaus Wiegrefe, |
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
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