Entre prédios com tinta descascada no bairro de Chinatown em Manhattan, o cemitério dos judeus originários do Recife e seus primeiros descendentes é um dos mais bem guardados segredos de Nova York. Poucos conhecem pessoalmente as tumbas das primeiras famílias judias que viveram na metrópole com a segunda maior população judaica do mundo, depois de Tel Aviv. Muito menos sabem que elas vieram do Brasil.
Apesar do desgaste de séculos de chuva, sol e neve, ainda dá para ler em algumas tumbas sobrenomes como Fonseca, Seixas, Gomes, Nunes, Cardozo, Castro e Bueno de Mesquita. Todos judeus portugueses ou espanhóis, com passado ligado ao tempo de domínio dos holandeses no Recife, onde a primeira congregação judaica das Américas foi construída.
Em 1654, Portugal retomou o controle de Pernambuco, que estava nas mãos dos holandeses da Companhia das Índias. Era o fim de uma era de liberdade para os judeus nas terras brasileiras. Eles mais uma vez eram expulsos pela coroa portuguesa. Antes, durante a Inquisição, haviam sido obrigados a deixar Portugal e rumar para a protestante Holanda, onde não eram alvo de perseguição.
Piratas. Com a expulsão do Recife, alguns milhares de judeus seguiram para a Holanda em 17 barcos. Uma dessas embarcações se perdeu e foi atacada por piratas espanhóis.
"Resgatados por um navio francês, foram levados para Nova Amsterdã, hoje conhecida como Nova York. Eram 23 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças", afirma Zacharia Edinger, o shamash (diretor de ritual) da gigantesca sinagoga Hispano-Portuguesa, denominada Shearit Israel. Localizada diante do Central Park, é a herdeira da primeira congregação judaica de Nova York. Atualmente, são eles que possuem as chaves do cemitério em Chinatown, abrindo-o em raras ocasiões, como nesta visita do Estado.
Os descendentes desses judeus portugueses se transformaram em figuras proeminentes na sociedade americana. Um deles, Benjamin Cardozo, já falecido, alcançou o posto de juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. Outro, Bruce Bueno de Mesquita, professor da Universidade de Nova York, é o mais destacado especialista de teoria dos jogos aplicada à ciência política.
Antes mesmo de entrar no cemitério, em um movimentado cruzamento, há uma placa, em inglês, com os dizeres "O Primeiro Cemitério da sinagoga Hispano-Portuguesa, Shearit Israel, na Cidade de Nova York".
O tamanho do terreno é pouco maior do que o de duas quadras de tênis. Parte acabou sendo destruída quando uma rua foi construída décadas atrás. Ao redor, famílias chinesas observam muitas vezes sem entender o que existe de especial nesse cemitério unindo as histórias de Brasil, EUA, Portugal, Holanda e da diáspora judaica.
Inscrições. Algumas tumbas possuem inscrições em português, inglês e hebraico. Há palavras como "Faleceu" e "Aqui Jaz". Uma delas tem o nome de Gershom Mendes Seixas, um dos rabinos mais importantes da história dos Estados Unidos e com um sobrenome que não esconde suas origens portuguesas. Ele era descendente dos judeus que vieram do Recife e foi líder da congregação na época da Revolução Americana.
"Visitar o cemitério foi como viajar no tempo. Ver sobrenomes portugueses no cemitério retrata uma face interessante de Portugal e do Brasil, mostrando que o elemento judaico é integrante do tecido social brasileiro e português, com nomes completamente portugueses", afirma o executivo Sergio Suchodolsky, que visitou o cemitério com o Estado.
O israelense Efrahim Gil afirmou que esperava desde 1966 para ir ao local nesta inédita visita.
O rabino brasileiro Mendy Weitman, do Jewish Latin Center, em Manhattan, disse ser "uma honra entrar no cemitério e ver como 23 judeus vindos do Brasil conseguiram construir a maior comunidade judaica fora de Israel, em Nova York" - seu pai, o rabino David Weitman, da Congregação Beit Yaacov, em Higienópolis, região central, escreveu o livro Bandeirantes Espirituais, justamente sobre os judeus do Recife.
Escavações acharam espaço usado para banhos de purificação
Ao longo dos séculos, sinagoga localizada no Recife Antigo teve outras ocupações - de comércio de açúcar a banco
15 de julho de 2012 | 3h 02
O Estado de S.Paulo
Depois de funcionar 18 anos no século 17, o espaço da Kahal Zur Israel teve diferentes ocupações - de comércio de açúcar a banco. Em 1998, em meio a um projeto da prefeitura de revitalização do Recife Antigo, foi criada uma comissão de especialistas para resgatar a sinagoga e a história da presença judaica em Pernambuco. Consolidou-se então a ideia de transformar a antiga edificação em patrimônio histórico.
O projeto arquitetônico foi idealizado pelo arquiteto José Luiz da Mota Meneses, que recriou as características originais da Kahal Zur Israel, enquanto uma prospecção arqueológica sob comando do professor Marcos Albuquerque levou a descobertas de detalhes, como datas e materiais de paredes, pisos e telhado. Tudo fundamentado em um manuscrito de 1657 e publicado em 1839, que foi descoberto pelo professor José Antônio Gonsalves de Mello em suas pesquisas na Holanda. Seu conteúdo mostrou o inventário das casas do Recife "construídas ou reformadas por flamengos ou judeus" durante a fase do Brasil Holandês (1630-1654). Entre elas, a Sinagoga do Recife.
Nas escavações arqueológicas, foram descobertos o "Miqvê", utilizado para os banhos de purificação espiritual e renovação dos judeus e o poço que o alimenta (Bor). Um Tribunal Rabínico, composto por três autoridades no assunto, analisou os achados e confirmou tratar-se da piscina ritual, com base nas medidas do local.
O Núcleo de Pesquisa do museu tem estudos e pesquisas sobre os séculos 16, 17, 20 e 21. A biblioteca possui acervo físico e virtual, coleções de documentos - muitos já transcritos - e um banco de depoimentos de imigrantes do século 20. / A.L.
Na sinagoga diante do Central Park, nomes em português
15 de julho de 2012 | 3h 02
O Estado de S.Paulo
Os judeus do Recife mantiveram como herança nomes e influências portuguesas. Embora a maioria da Congregação Hispano-Portuguesa não descenda dos pioneiros que vieram de Pernambuco a Nova York, ritos da sinagoga diante do Central Park ainda usam expressões em português.
As cadeiras do presidente e vice da congregação são "bancos". Quem carrega a Torah é o "levantador". O coral ainda executa cânticos em português arcaico. "As diferenças entre os diferentes grupos de judeus pelo mundo não têm a ver com questões teológicas, mas históricas e de costumes, como algumas orações e rituais específicos; com roupas, comidas e inclusive línguas diferentes, apesar de o hebraico ser o idioma base dos ortodoxos. Os judeus portugueses tiveram uma forte influência da cultura católica portuguesa, que foi perpetuada em Amsterdã e Hamburgo", afirma o professor da Unifesp Bruno Feitler.
Segundo Daniel Breda, do Arquivo Histórico Judaico no Recife, cristãos-novos portugueses adotaram nomes portugueses.
Feitler acrescenta que "alguns dos convertidos espanhóis adotaram sobrenomes específicos, como Santa Fé, mas a maioria dos convertidos simplesmente tomou sobrenomes comuns ou de padrinhos. Há casos de inquisidores julgando judeus que tinham o mesmo sobrenome que eles! A ideia de que sobrenomes portugueses baseados em nome de árvore ou animal têm origem judaica é mito infundado". / G.C.
Brasil não tem mais descendente do grupo de judeus do Recife
Segundo historiador, no século 17 eles não puderam permanecer no Brasil sob domínio da coroa portuguesa
15 de julho de 2012 | 3h 01
NOVA YORK - O Estado de S.Paulo
Não há mais descendentes dos judeus que estiveram no Recife no século 17 atualmente no Brasil. Todos retornaram para a Holanda ou integram a árvore genealógica dos que partiram para Nova York. "A história dos 23 é realmente sui generis. Os outros navios (com judeus do Recife) voltaram aos Países Baixos (Holanda) e de lá realmente muitos 'ex-brasileiros' retornaram à América para tomar parte nas incursões colonizadoras do Caribe, não só sob bandeira holandesa, mas também francesa e inglesa. Atualmente, há remanescentes judaicos no Suriname e em Curaçau", afirma Daniel Breda, do Arquivo Histórico Judaico no Recife, que estudou a história dos judeus portugueses na Holanda.
Segundo o historiador, que tem origem judaica portuguesa, "os judeus residentes no Recife holandês não tiveram a possibilidade de permanecer no Brasil sob jugo português. Em janeiro de 1654, o comandante das tropas luso-brasileiras, Barreto de Menezes, após a capitulação dos holandeses, garantiu somente três meses de salvo-conduto aos judeus. Ele deixou bem claro que os judeus que em algum momento haviam sido batizados e voltado a exercer o judaísmo durante o domínio holandês estariam sujeitos à Inquisição".
Breda afirma haver histórias de algumas famílias que se dispersaram pelo sertão nordestino. "Mas nunca vi um estudo comprobatório que demonstre linearmente a descendência de um judeu praticante do Brasil Holandês remanescente no País. O que posso afirmar com certeza é que antes e depois dos holandeses havia cristãos-novos, às vezes de famílias convertidas havia muitas gerações, vivendo por todo o Brasil."
O historiador acrescenta que "nem todos os que estavam lá em 1630 passaram a professar o judaísmo publicamente". "Portanto, há descendentes de cristãos-novos no Nordeste inteiro, mas naturalmente, como em todo o País, trata-se de uma composição parcial da genética do brasileiro, tal como negros, índios e outros grupos caucasianos." Uma das marcas da presença judaica no Recife é a Rua Bom Jesus, antes conhecida como Rua dos Judeus. / G.C.
Recife também tem Muro das Lamentações
A exemplo do que ocorre em Jerusalém, na mais antiga sinagoga das Américas visitantes costumam deixar bilhetinhos com pedidos e orações
15 de julho de 2012 | 3h 01
ANGELA LACERDA / RECIFE - O Estado de S.Paulo
Resgatada em 1998 por um grupo de historiadores e arqueólogos, a Primeira Sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel, funciona como museu desde 2002 e tem sua sacralidade reconhecida por muitos dos seus visitantes. Em uma analogia com o que ocorre no Muro das Lamentações, em Jerusalém, considerado o recanto mais sagrado do Judaísmo, eles costumam colocar nas frestas das suas paredes sem reboco bilhetinhos com pedidos e orações.
A Kahal Zur Israel funcionou de 1636 a 1654 na antiga Rua dos Judeus - hoje Rua do Bom Jesus - no bairro do Recife Antigo, durante o período de ocupação holandesa. Foi construída por judeus portugueses que, perseguidos pela Santa Inquisição, refugiaram-se depois na Holanda e em outros países, como os Estados Unidos. Em Pernambuco, formaram a Kahal Kadosh Zur Israel, ou Santa Congregação Rochedo de Israel. Na época, esta parte do Brasil era quase extensão da Holanda, com liberdade de culto religioso.
"Fiz meu pedido por algo coletivo, pela paz mundial", contou a farmacêutica cearense Lia Queiroz, que mudou para o Recife há três anos e conheceu a sinagoga, visitada por uma média de 1,5 mil pessoas por mês. Para ela, qualquer lugar é bom para se pedir pelo bem da humanidade.
A turismóloga pernambucana Rosimar Holanda, que já havia conhecido a sinagoga em uma atividade do curso, reconhece o espaço como um local sagrado e pediu pela família. Os bilhetinhos são respeitados pelos funcionários da sinagoga, que só os recolhem quando eles caem naturalmente. "Mesmo assim, ninguém os abre", afirma a gestora do museu, que abriga o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, Tânia Kaufman.
Muralha. O Muro das Lamentações é resquício da antiga muralha que cercava o Templo de Jerusalém, destruída pelos romanos nos anos 70 d.C., após vitória sobre os judeus.
Na mais antiga sinagoga das Américas, suas paredes foram mantidas intocadas e sobreviveram às reformas e alterações feitas no local nos últimos 362 anos, desde o fechamento da sinagoga, depois da expulsão dos holandeses. O fato, segundo Kaufman, aliado à atmosfera de espiritualidade e história, pode ajudar a explicar os pedidos e orações, a exemplo do que ocorre no Muro das Lamentações.