terça-feira, 3 de junho de 2008

Cabula lá e cá - Origens da identidade cultural dos escravos das fazendas do Sudeste no século XIX

O historiador Robert Slenes, da Unicamp, explica as origens da identidade cultural dos escravos das fazendas do Sudeste no século XIX
 
Marina Lemle

Para se conhecer e entender a cultura dos escravos nas fazendas no Sudeste do Brasil no século XIX é preciso pesquisar os cultos do antigo Reino do Congo, de onde vieram em sua maior parte.

A premissa foi colocada por Robert Slenes, professor titular de História da Unicamp, em palestra realizada no Museu Nacional da UFRJ, no Rio, na última terça-feira, 20 de maio. Ele contou que, ao começar suas pesquisas sobre identidade escrava, percebeu que teria que beber em fontes africanistas.

De acordo com Slenes, em 1850, cerca de 90% dos homens e 2/3 das mulheres escravizadas em fazendas com 20 a 50 escravos no Sudeste eram africanos. A continuidade do tráfico negreiro manteria essa percentagem ao longo de todo o século XIX. Especialista em demografia da escravidão e história social dos escravos, ele revelou que mais de 90% dos escravos trazidos para o Sudeste no século XIX vieram da África Central, sendo ¾ da parte ocidental e ¼ da oriental.

Segundo o historiador americano, o processo de "creolização" – o encontro de culturas – começou na África, em Angola e no antigo Reino do Congo, onde as sociedades se tornaram mais escravistas entre 1810 e 1850, com a intensificação do tráfico português. O pesquisador, doutorado pela Universidade de Stanford, explicou que a identidade social dos escravos se faz através da identidade relacional entre eles. "Não é pela cultura, mas pelos encontros e choques com as outras culturas. É nas fronteiras que se define a identidade", afirmou.

Religião una, com variações

Com a ajuda do lingüista Carlos Vogt, também da Unicamp, Slenes estudou o vocabulário de origem africana. Segundo Slenes, a maioria dos escravos era de etnias Banto, tendo línguas e manifestações culturais semelhantes. Entre elas, destaca-se o fogo dentro de casa. "O fogo mantido aceso na habitação é um caminho para o mundo espiritual. Através dele, os ancestrais cuidam das pessoas. Se apaga-se o fogo, as pessoas se sentem doentes", disse.

Outras manifestações identificadas por Slenes na África Central e no Sudeste brasileiro são a adoração a pedras de formas estranhas, encontradas em riachos ou sambaquis; o culto de aflição, um culto de cura através de dança e música, com tambores; cultos de crise e rituais de purificação; cultos de governança, com instâncias políticas, em que uns se justificam perante outros, que fazem cobranças; reuniões em clareiras na floresta, perto de riachos, onde estariam presentes os espíritos da terra; a adoração aos primeiros habitantes da terra em que estão e a seus sacerdotes, o que, no caso brasileiro, leva os negros a procurarem os sacerdotes indígenas, promovendo o sincretismo; e a utilização de uma língua secreta, que inseria prefixos "ca" na frente de todas as palavras, como "Cabula", onde "bula" significa "quebrar" e estaria relacionada ao transe religioso.

"Era uma religião una, com variações", resumiu Slenes. Ele contou que o ponto culminante da cabula é quando a pessoa recebe um nome específico, que fica para o resto de sua vida e representa o seu guia espiritual.

De acordo com pesquisadores, as manifestações religiosas caminhavam junto com planos de rebelião, como as conspirações que ocorreram em Vassouras em 1848 e em São Roque, no Espírito Santo, em 1854.

Em sua pesquisa, um dos rastros que Slenes seguiu – e continua seguindo, visto que ainda há o que descobrir – é uma nota de rodapé de um livro de Leslie Bethell sobre o tráfico de escravos para o Brasil. A nota menciona um relatório secreto sobre um plano de rebelião de escravos comandado por um grupo religioso. Descoberto pelos senhores, o plano foi denunciado à assembléia legislativa do Rio de Janeiro, que enviou um dossiê ao "Itamaraty" inglês, que, por sua vez, publicou-o para os seus parlamentares. Assim, o que era secreto aqui tornou-se público lá, e Slenes conseguiu achar a cópia original nos arquivos ingleses. Ele acredita, entretanto, que se achar os documentos originais daqui, poderá conhecer melhor a cultura dos escravos.

Autor do livro "Na Senzala, uma flor", de 2000, uma referência fundamental no tema, Slenes explicou que costuma esbarrar num problema metodológico: como recuperar preceitos cosmológicos sobre os escravos, sendo que eles não falavam ao mundo senhorial nem sob coação, e mesmo que dissessem algo, os senhores e delegados não saberiam registrar ou interpretar corretamente o que haviam dito?

Saiba mais:

Abolição em oito tempos - Oito especialistas refletem sobre as origens, o processo e os efeitos do fim da escravidão no Brasil. Leia na Revista de História da Biblioteca Nacional de maio, à venda nas bancas.

Escravidão na Mauritânia: um secular nó cego - Artigo de Alain Pascal Kaly.

Herança negra - Quilombolas interagiam com comunidades locais e criaram núcleos locais que sobrevivem até hoje. Artigo de Flávio Gomes e Antonio Liberac C. S. Pires.Alberto da Costa e Silva.

Imagens da África - Desconhecer a África e a realidade dos africanos não impediu que Castro Alves denunciasse a violência e a degradação da escravidão. Artigo de

Central African Culture, "Kongo"/PanBantu Identity and Slave Resistance on the Plantations of Southeastern Brazil, ca. 1810-1888 – Estudo preliminar de Robert Slenes apresentado em seminário na Bahia em março de 2007. Arquivo PDF.

Quilombos e revoltas escravas no Brasil – Artigo de João José Reis, professor do Departamento de História da UFBA, na Revista USP de dez/1995-fev/1996.

Na Senzala, uma flor - Resenha do livro de Robert Slenes na revista Comciência, da Unicamp.

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