Rodolpho José Del Guerra
No final do seu livro Os Sertões, em “Depoimento do autor”, Euclides veste-se de dor ao relatar o sofrimento das crianças: “ (...) Aos lados, desorientadamente, procurando os pais que ali estavam entre os bandos ou lá em baixo mortos, adolescentes franzinos, chorando, clamando, correndo. Os menores vinham às costas dos soldados agarrados às grenhas despenteadas há três meses (...) e ali estavam, agora, resolvendo desastradamente, canhestras amas-secas, o problema difícil de carregar uma criança. (...) Uma megera assustadora, ágil apesar da idade, (...) atraía a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto (...)”.
“Euclides da Cunha, como correspondente de O Estado de S. Paulo, permaneceu na região por quase três semanas em 1897. Deixou Canudos na manhã de 3 de outubro, dois dias antes do fim da guerra, doente e acometido por acessos de febre. Levou consigo o menino jagunço que recebera como “presente” do general Artur Oscar, comandante da quarta e última expedição militar.” (trecho de “Pistas de um enigma”, de Vanessa Sattamini Varão Monteiro, de sua dissertação de mestrado na PUC do Rio de Janeiro, em 13-4-2007, publicado na “Revista de História”, da Biblioteca Nacional).Nós sempre soubemos dessa criança que Euclides trouxe de Canudos, sem nenhum relato biográfico. A historiadora Vanessa dispôs-se a enfrentar o árduo trabalho de pesquisa para responder a uma pergunta de José Calasans, lançada em 1980: “... qual teria sido, depois de 1908, o destino do jaguncinho que se fez professor primário em São Paulo? Quem, por outro lado, sabe de informações de jaguncinhos para nos fornecer?” Há dias, recebi um telefonema da senhora Maria Lúcia Prestes, residente em Bragança Paulista, da família de Ludgero Prestes, o “jaguncinho”. Conversamos muito. Sábado, 5 de abril, junto a uma carta, chegaram-me cópia da tese de mestrado de Vanessa Sattamini V. Monteiro e uma foto do “órfão de Canudos”. Fiquei surpreso que toda a velada história do menino tivesse vindo à luz, com detalhes.Como meu espaço no jornal é limitado, vou citar cronologicamente a história de Ludgero Prestes, transcrevendo pequenos trechos do trabalho de Vanessa.“... No decorrer da terceira expedição militar, cidadãos compadecidos da sorte dos sobreviventes de Canudos criaram em Salvador o Comitê Patriótico da Bahia, que atuou entre 1897 e 1901.”“Euclides da Cunha, como correspondente de O Estado de S. Paulo, permaneceu na região por quase três semanas em 1897. Deixou Canudos na manhã de 3 de outubro, dois dias antes do fim da guerra, doente e acometido por acessos de febre. Levou consigo o menino jagunço que recebera como “presente” do general Artur Oscar.”Na sua caderneta, em 22 de setembro de 1897, Euclides anotou: “Noto com tristeza que o jaguncinho que me foi doado pelo general (Artur Oscar) continua doente e talvez não resista à viagem para Monte Santo.” Transcrição de “Gazeta de Notícias” de outubro de 1897: “Chegou hoje pelo noturno o Dr. Euclydes da Cunha (...) Na Estação do Norte o Dr. Euclydes era esperado (...) Em companhia do Dr. Euclydes veio um jaguncinho de sete anos, que ficará sob a proteção do Sr. Gabriel Prestes, diretor da Escola Normal. O jaguncinho não tem pai nem mãe, é muito vivo e narra com precisão admirável todos os episódios sangrentos dos últimos combates (...).” “O garoto adotará o sobrenome do tutor e passará a chamar-se Ludgero Prestes.” Sobre Gabriel Prestes. o pai adotivo: “Era um importante educador paulista, diretor da Escola Caetano de Campos, com livro publicado”.Ludgero estudou na prestigiada “Caetano de Campos”. Formou-se professor primário em 1908. Em 3 de outubro de 1908, escreveu a Euclides da Cunha, recebendo a carta-resposta redigida quatro dias depois. Transcrevo-a:“Rio, 7 de outubro de 1908 Ludgero Prestes Recebi a tua prezada carta de 3 do corrente; li-a com surpresa indescritível, verdadeiramente encantado; e não poderei traduzir-te a minha comoção ao ver aparecer-me quase homem – e homem na mais digna significação da palavra – o pobre jaguncinho que me apareceu pela primeira vez há onze anos no final de uma batalha. Mas na mesma ocasião associei-te a recordação de um amigo a quem deves muito, mais do que a mim. O que fiz foi, na verdade muito pouco: — o trabalho material de livrar-te das mãos dos bárbaros e conduzir-te a São Paulo. A minha ação verdadeiramente útil foi confiar-te a Gabriel Prestes. A ele, sim, deves tua maior e até incalculável gratidão. Quero que me estendas sempre a tua mão de amigo – mas a Gabriel Prestes deves devotar, incondicionalmente, todo o teu coração. Ao lado da tua fotografia veio a tua carta e nesta vi refletir-se um espírito capaz de grande desenvolvimento. O modesto professor complementar de agora – iniciado, como foi, na vida, por um mestre daquele porte, há de subir mais alto. / Mas ainda que isso não aconteça, a tua posição atual, já é um triunfo. Continua, portanto, na trilha que te apontou um dos mais belos caracteres que eu conheço; e sempre que puderes manda notícias tuas a quem também se preza em ser teu amigo muito afetuoso. Euclides da Cunha. P.S. – Moro na rua Humaitá 61, e não preciso dizer-te que ali tens, francamente aberta, uma casa, tão hospitaleira quanto a minha rude barraca de Canudos. / Minhas saudades a Gabriel Prestes.Euclides”Ludgero Prestes (o jaguncinho) foi professor adjunto do Grupo Escolar de Serra Negra, onde se casou com Beatriz da Cunha Lima. Na certidão de casamento consta ter 21 anos, ser filho de João Luiz e Maria Luiz e ter nascido em Canudos-BA.Em 7 de abril de 1913, foi nomeado diretor interino do Grupo Escolar de Bebedouro, fundado naquele ano.Lecionou em Amparo, onde faleceu, em 13 de outubro de 1934, aos 43 anos, deixando quatro filhos. Em nome dos rio-pardenses, parabenizo a historiadora Vanessa Sattamini V. Monteiro e agradeço a Sra. Maria Lúcia Prestes, que vê minha cidade como um templo preservador do Euclidianismo. 7-4-2008.
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