| A doce vida dos mortos 
         O         Dia de Finados é uma tradição antiquíssima e muito popular no México. O         motivo é nobre: trazer parentes falecidos para o convívio         familiar Maria Teresa Toribio Brittes         Lemos Ao contrário do Brasil, onde o carnaval é         a maior festa popular, com milhares de pessoas entregues à folia por três         dias consecutivos, no México, a maior mobilização festiva e popular ocorre         no Dia dos Mortos. Na realidade, geralmente as festividades acontecem em         vários dias, entre 31 de outubro e 2 de novembro, e em muitas cidades elas         começam já no dia 28 de outubro. Parentes, amigos e convidados festejam o         retorno de seus finados com grande variedade de comidas, bebidas, doces e         frutas em banquetes espetaculares. De tão importante, o acontecimento foi         declarado patrimônio cultural da Humanidade pela Unesco. A ideia de que a morte é uma continuidade         da vida era comum na cultura mesoamericana, do México antigo. A morte era         considerada uma transição da vida para outro mundo ou para um espaço, ou         mesmo uma nova dimensão, que imaginavam existir para essa finalidade. As         origens dessas cerimônias são antigas e remontam a 3.000 anos antes da era         cristã. Nas festas rituais, era costume colocarem crânios nos altares         erguidos, representando os ancestrais. Desde o século I, os cristãos         rezavam pelas almas e visitavam os cemitérios. Já no século V, a Igreja         Católica dedicou um dia do ano para rezar por todos os mortos, inclusive         os esquecidos pelas famílias. O dia 2 de novembro foi estabelecido no         século X, pelo calendário litúrgico cristão, como Dia de Finados. No México, os povos indígenas realizavam         festas e rituais para reverenciar seus mortos. Mas, com a colonização         espanhola, novas práticas culturais foram introduzidas e mescladas à         cultura nativa para celebrar os antepassados. Rezas e cânticos se         misturavam em festas, revestidos de um caráter ao mesmo tempo sagrado e         profano. Antes da chegada dos espanhóis, os         indígenas homenageavam seus mortos durante todo o mês de agosto, que         corresponde ao nono mês do calendário solar asteca. Na época, as         festividades eram presididas pela deusa Mictecacíhuatl, como era chamada a         Deusa da Morte dos astecas. Depois, mesmo com a presença do         cristianismo, algumas tradições foram mantidas, como o tempo das festas,         que podem durar vários dias. A comemoração do Dia dos Mortos atrai a         população tanto das áreas urbanas como das rurais, além de despertar o         interesse de grande número de pessoas de vários países. Nessas festas, as famílias costumam         oferecer banquetes com muita fartura para as almas dos mortos, como         retribuição por tudo que os antepassados fizeram para eles. Isso é         possível porque as festas acontecem em um período de muita prosperidade:         no calendário agrícola, outubro e novembro correspondem ao início das         colheitas dos produtos semeados na primavera. Na população de origem indígena – os         choles – do estado de Oaxaca, região meridional do México, as festividades         começam todos os anos no dia 25 de outubro e se estendem até 5 de         novembro. Esse período corresponde à longa jornada realizada pelas almas         para se aproximarem de seus familiares. Os choles precisam desse tempo         para festejar seus mortos, pois as almas, em geral, estão "muito         ocupadas", já que esta população mescla suas atividades sagradas com as         profanas. Por esse motivo, eles sempre estão ocupados com seus afazeres da         vida cotidiana, especialmente com as atividades agrícolas. Já no estado de Veracruz, camponeses e         indígenas comemoram o retorno das almas a partir de 18 de outubro, dia de         São Lucas, para receber os que sofreram morte violenta, por assassinato ou         acidente. Os rituais começam no dia 31 de outubro, quando chegam as almas         das crianças, consideradas anjinhos. No dia seguinte, 1º de novembro, é a         vez dos espíritos dos adultos. Após festejarem o reencontro com os         familiares vivos, as almas regressam ao Reino dos Mortos, para repetir no         ano seguinte o mesmo trajeto. Cada família se preocupa em reproduzir os         rituais de acordo com as narrativas feitas pelos mais velhos. Todos os         detalhes são observados: arrumação das casas, limpeza dos cemitérios,         decoração das igrejas, ruas, praças e outros lugares públicos, variedade         de comidas e bebidas, além da compra de roupas e sapatos novos para os         mortos. Trabalhando coletivamente, pretendem manter a coesão do grupo e         asseguram sua continuidade, evitando que aquelas práticas e representações         culturais se percam no esquecimento. Altares adornados com bandeirinhas de         papel de seda são erguidos nas casas, igrejas, praças e edifícios         públicos. Os retratos das pessoas mortas são rodeados de flores amarelas         chamadas cempasúchitl – espécie conhecida como a flor dos mortos. Os         mexicanos acreditam que as cores vivas dessas plantas ajudam os defuntos a         encontrar o caminho de volta para casa. As almas retornam à Terra por um caminho         coberto de pétalas que formam um grande tapete amarelo, cercado por velas         acesas colocadas em pequenos vasos ou copos, indicando a direção de suas         casas. Percorrem a trilha iluminada – os senderos luminosos – e chegam às         antigas residências para desfrutar as oferendas com suas famílias e seus         amigos. Vivos e mortos se unem para matar as saudades, ficar juntos e         aproveitar aquele momento mágico do encontro entre a vida e a morte, onde         terminam os limites que separam o mundo dos vivos e o dos mortos. Por         isso, é preciso deixar os mortos informados do endereço certo do seu         destino. Quando se mudam da comunidade, os integrantes de uma família vão         ao cemitério para comunicar a nova residência. Quando se casam, os noivos         agem do mesmo modo para informar o novo endereço aos antepassados mortos.         As almas não podem errar o caminho do eterno retorno. Na mesa da sala, no salão dos edifícios e         nas igrejas são colocados caixões com esqueletos de plástico, vestidos com         os trajes e sapatos novos e adornados com flores amarelas, representando         os mortos festejados. Muitas vezes, os esqueletos têm certos objetos que         lembram a profissão dos mortos, como guitarras ou outros instrumentos         musicais, e também chapéus e ponchos como os que eram usados quando         viviam. Ao lado do caixão são dispostas vasilhas com comidas, bebidas,         frutas, doces, molhos e cigarros para agradar às almas. Nos dias que antecedem as festas, homens,         mulheres e crianças iniciam os rituais de celebração. Nas matas, cortam         troncos de árvore para construir os altares que serão erguidos na entrada         das comunidades, das igrejas ou de edifícios públicos. Muitas famílias         passam a noite junto aos túmulos dos parentes. Ali, conversam, bebem e         comem, brigam e namoram. É o espaço sagrado dos mortos preenchido pelo         profano da vida cotidiana. Nas casas, os moradores seguem o mesmo ritual,         erguendo altares e enfeitando tudo. As culturas antigas acreditavam que, após         a morte, o corpo e a alma continuavam a viver e que poderiam retornar aos         lugares onde tinham vivido. Os mortos eram tratados como se ainda         estivessem próximos dos familiares. De modo contraditório, muitas vezes as         almas inspiravam medo e, ao mesmo tempo, tranquilidade. Os povos antigos         receavam que os mortos sem sepultura, ou os que morreram de modo violento,         viessem perturbar, como fantasmas, a sociedade dos vivos. Por isso         realizavam rituais, com cânticos e oferendas. Atualmente, durante os rituais do Dia dos         Mortos, percebe-se a forte presença de outras manifestações culturais. Aos         rituais tradicionais foram incorporados elementos próprios das festas do         Dia das Bruxas – o Halloween, originário dos hatitantes das Gálias e das         ilhas da Grã-Bretanha, entre os anos 600 a.C e 800 d.C. –, como fantasias         de bruxa, chapéus pontudos, unhas grandes ou garras, máscaras imitando         monstros e os doces em forma de caveira. Sem dúvida, essas alterações         foram provocadas pelo fenômeno da globalização. No entanto, pesquisas         recentes apontam permanências culturais da Espanha antiga, introduzidas         pelos celtas na Península Ibérica. Os novos elementos celtas e ibéricos se         mesclam às bandeirinhas de papel de seda, às flores amarelas, às oferendas         e aos rituais das festas mexicanas. Em mutação permanente, o processo de         apropriação cultural jamais é definitivamente concluído. As almas         agradecem. Maria Teresa Toribio Brittes Lemos é         professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de América         Latina: Identidades em Construção – das sociedades tradicionais à         globalização (7Letras, 2008). Saiba Mais - Bibliografia DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso.         São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SÁNCHEZ, Jorge Arguello. Dia dos Mortos.         México: Aragon, 2007. SOUSTELLE, Jacques. A vida cotidiana dos         astecas às vésperas da conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1972 .Revista de         História da Biblioteca Nacional | 
sábado, 3 de novembro de 2012
A doce vida dos mortos
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